O QUE DEFENDEMOS

UMA ESQUERDA RENOVADA, POPULAR E SOLIDÁRIA

  1. O Brasil atravessa um dos momentos mais dramáticos da sua história. A combinação da maior crise desta geração, a pandemia de COVID-19, com um governo de extrema-direita e neoliberal, deixou o país sem rumo, sem perspectivas, refém da morte e do desastre social. Por outro lado, vemos que esse ciclo - que se abriu com o golpe de 2016 e foi coroado com a eleição de Bolsonaro - mostra sinais de esgotamento mais cedo do que muitos previam. O agravamento da crise econômica e sanitária, a desmoralização da operação Lava Jato, a derrota de Trump nos EUA e as eleições municipais de 2020 colocaram em xeque as condições que levaram Bolsonaro ao governo.

  2. A esquerda tem a oportunidade de apresentar-se como alternativa de poder para a reconstrução nacional. Mas, para isso, precisamos tirar as lições das batalhas dos últimos anos e do ciclo de governos progressistas no país. Reconhecer seus avanços, aprender com seus erros e olhar para o futuro, reconectando-nos, assim, com a juventude e o sentimento popular. Precisamos trilhar um caminho renovado - com espírito crítico suficiente para não enxergar o futuro como simples reedição do passado e com compreensão histórica - para não embarcar em atalhos da antipolítica e do antipetismo. Já vimos onde eles deram. Temos grandes desafios para avançar neste caminho: práticos, programáticos e éticos.

  3. A esquerda descuidou da disputa de valores na sociedade. O bolsonarismo tornou-se uma força social e mantém sua base organizada a partir de uma guerra cultural, promovendo a cultura da morte, da indiferença e o fundamentalismo religioso. O neoliberalismo já vinha há décadas preparando esse caminho com a promoção de valores meritocráticos, individualistas e consumistas, naturalizando a desigualdade e a violência. Nós perdemos essa batalha, aliás, muitas vezes sem sequer entrar em campo. A crítica, de Pepe Mujica, é acertada: não basta promover melhoras econômicas, formar consumidores; é necessário disputar os valores que acreditamos. Queremos uma sociedade que não esteja pautada pelo cada um por si, mas pela solidariedade. Não pelo individualismo, mas pela valorização do coletivo. Não pelo consumismo, a violência e a intolerância, mas pela valorização da vida e da diversidade. Esses são os princípios éticos que inspiram a militância socialista. O exemplo é fundamental, praticar aquilo que pregamos. Contudo, não se trata apenas de condutas individuais e, sim, dos princípios que organizam as relações sociais.

  4. Isso nos leva à importância da disputa de projeto. Não basta sermos oposição e resistência ao bolsonarismo e à agenda econômica neoliberal. Precisamos de um programa que apresente respostas às grandes questões do nosso tempo e que mobilize esperanças do povo para o futuro. Não simplesmente um programa de governo – que envolve um debate mais pragmático sobre as relações de forças – mas, sim, indicar as grandes linhas do modelo de sociedade pelo qual lutamos. Os princípios para fazer a disputa ideológica na sociedade e engajar a militância.

  5. O ponto de partida, de qualquer programa socialista, é o combate às desigualdades. O capitalismo financeiro elevou, nas últimas três décadas, a desigualdade de renda e riquezas a níveis jamais vistos. O mundo tornou-se mais rico, entretanto, o abismo entre o 1% e os 99% nunca foi tão grande. Isso coloca a urgência da agenda de tributação progressiva - taxação de grandes fortunas, heranças, lucros e dividendos - da regulação dos fluxos de capital e da luta por direitos trabalhistas num cenário de superexploração do trabalho. O conflito distributivo precisa estar no centro da estratégia da esquerda. Porém, precisamos falar de desigualdades e não apenas da desigualdade de renda, incluindo até mesmo, as formas de opressão estruturantes da nossa sociedade. O racismo e o machismo são elementos definidores do capitalismo brasileiro. As desigualdades sociais e raciais praticamente se confundem. O machismo e a violência, contra a mulher, são a expressão direta da legitimação da subcidadania e são atravessados pela desigualdade social. Não entendemos a luta antirracista e feminista como “identitárias” ou de “minorias”, afinal, somos um país de maioria negra e feminina. Não se trata simplesmente da afirmação de identidades e da demanda por políticas setoriais. São lutas indissociáveis do combate à desigualdade social. Estão, portanto, no centro da agenda política.

  6. O projeto de sociedade, que defendemos, exige, também, a construção de um Novo Modelo de Desenvolvimento. O Brasil vem promovendo há décadas um processo de reprimarização da sua economia, com base no extrativismo e no agronegócio. Nunca a produção de maior valor agregado foi tão pouco significativa na economia nacional e na pauta exportadora. De um lado, o impacto deste retrocesso se expressa na deterioração do papel do Brasil na divisão internacional do trabalho, na perda de perspectiva de um projeto de ciência e inovação, com o consequente efeito sobre nossa soberania. Também, na tendência à precarização dos empregos gerados no país, com desindustrialização e redução da massa salarial. Por outro lado, a devastação - que o capitalismo produziu no meio ambiente mundial – exige, de todos nós, uma resposta que vá além do debate econômico. A economia tem que estar a serviço da vida e não o contrário. Além dos efeitos sociais, este modelo de desenvolvimento destrói as florestas, contamina as águas, o ar, os alimentos e promove o aquecimento global, que coloca em xeque a própria existência da vida no planeta. As crises, do clima e do meio ambiente, colocam o desafio urgente de um Novo Modelo, que reveja a matriz energética, os modais de transporte, as emissões de carbono e o modo de produção agropecuário. É uma questão de sobrevivência.

  7. Este Novo Modelo também precisa questionar a lógica da mercantilização dos bens comuns e direitos universais. A água, a geração de energia elétrica, as ondas eletromagnéticas que permitem as telecomunicações são bens comuns da humanidade. É inaceitável sua privatização e apropriação pelo mercado. O mesmo vale para os direitos universais, como a Educação e a Saúde. A mercantilização desses direitos os transforma em privilégios de quem pode pagar por eles. É papel do Estado, com mecanismos de planejamento, intervenção e controle social, fazer a gestão dos bens comuns e dos serviços que promovem direitos universais.

  8. O controle social é fundamental para que a valorização do público tenha legitimidade e apoio social. A negação da política, o individualismo e a defesa de um Estado Mínimo são a expressão ideológica de uma profunda crise de representação democrática. De fato, o interesse público está sequestrado pelo privado: o modelo de financiamento eleitoral, os lobbies corporativos corruptos, a porta giratória que coloca o poder econômico no centro das decisões políticas. Isso produz profunda descrença popular na democracia e alimenta saídas autoritárias, a exemplo de Bolsonaro. Precisamos de ousadia para reinventar as formas de participação democrática, que reduzam a distância entre a política e as pessoas. Plebiscitos, consultas públicas, conselhos populares, mecanismos de participação digital são caminhos para construir um sistema político com maior inclusão, participação e controle social, combinando democracia direta e representativa.

  9. Ainda em relação ao programa, precisamos ser capazes de dar resposta às novas formas de relação de trabalho que vem se tornando hegemônicas nos centros urbanos brasileiros. Parte do distanciamento da esquerda, com a consciência popular nas periferias, tem a ver com a falta de respostas a fenômenos como a uberização e as várias formas de empreendedorismo. Na medida em que a “ideologia do empreendedorismo” funciona na prática como uma maneira de naturalizar a superexploração e a negação de direitos, a esquerda acomodou-se numa negação pura e simples dessas formas de trabalho, contrapondo a elas nossa defesa da formalização. Já passou da hora de percebermos de que esse discurso não dá conta da questão. O mundo do trabalho e a expectativa de parte expressiva dos trabalhadores mudaram de forma definitiva. As formas de organização de classe, também. A aplicação em massa da Inteligência Artificial, na esteira da Revolução do 5G, tende a aprofundar ainda mais essas mudanças nas próximas décadas. Obviamente que nosso ponto de partida inegociável é a defesa dos direitos trabalhistas e previdenciários. Mas, é necessário dialogar com as formas de empreendedorismo popular e periférico, sob a pena de perder a conexão com milhões de trabalhadores. Há experiências na América Latina de organização cooperativa dos serviços, há novas formas de economia solidária e um importante debate aberto sobre Nova Economia. Precisamos de um projeto que dê resposta aos dilemas concretos das novas formas de trabalho precarizado e nos reconecte com a consciência popular nas periferias urbanas.

  10. Nosso maior desafio prático é, justamente, essa reconexão. Um programa, que dialogue com as demandas populares, é um passo, mas, nem de longe suficiente. Defender boas ideias sem trabalho de base não nos leva muito longe na disputa pela hegemonia do nosso projeto. Boa parte da esquerda descuidou do trabalho de base no último período. Dialogar com o povo apenas de 4 em 4 anos, limitado a objetivos eleitorais, só reforça o sentimento de antipolítica. Muitos movimentos sociais, a exemplo do MTST, construíram-se através deste trabalho de base permanente, com o pé no barro, em sintonia com as demandas populares e estimulando redes de solidariedade no território. Este caminho deve nos inspirar a direcionar a energia e o tempo de milhares de ativistas para essa prática. Não há caminho fácil para recolocarmos a esquerda como alternativa de poder no Brasil. Precisamos combinar a disputa de valores solidários, com um programa arejado e popular e com uma prática de presença permanente, acolhedora e combativa, junto ao povo. Combinar territórios, ruas, redes e disputa institucional.

  11. Entendemos que o PSOL é o espaço partidário que melhor pode representar esse projeto de esquerda renovada no Brasil. Por estar aberto aos movimentos, aos ativismos, às lutas, à expressão da diversidade e a uma construção coletiva; Por ter se posicionado, corretamente, nas encruzilhadas políticas do último período, aliando combatividade, defesa dos princípios socialistas e disposição de unidade. O PSOL já é hoje o espaço político mais dinâmico de expressão dos ativismos: da luta feminista, antirracista, LGBT, da causa ambiental e de tantos movimentos sociais. Porém, para sermos alternativa real de poder em nível nacional, precisamos ir além. O maior desafio, hoje, é construir um partido popular, enraizado nas periferias e interiores, em que, o povo, mais pobre e sofrido, sinta-se representado. Não podemos nos contentar em pregar para convertidos nas bolhas progressistas. Não podemos ter uma linguagem incapaz de dialogar com o povo. Nem consumir a energia e o tempo de uma geração entusiasmada de militantes em disputas internas pequenas, frequentemente, sectárias e descoladas da realidade. O internismo vicia e desvirtua o partido do caminho de ser expressão das lutas sociais e alternativa real de poder para o povo.

  12. As eleições, de 2020, mostraram que podemos avançar neste caminho. Em São Paulo, a candidatura, de Boulos e Erundina, teve mais de 2 milhões de votos e representou uma esperança de renovação em escala nacional. Mais do que isso: nosso melhor resultado foi na periferia, a mensagem chegou aonde queríamos. Perdemos eleitoralmente para a máquina tucana, mas, ganhamos os corações da juventude, que, em sua ampla maioria, aderiu ao nosso projeto. Há toda uma geração aberta para o novo. Em Belém, com Edmilson Rodrigues, o PSOL venceu numa experiência de unidade da esquerda que deve deixar lições. Aliás, a vitória de Belém deve nos atentar para a necessidade de ter prioridade no Norte e Nordeste do país. Um partido popular precisa ter estratégia de enraizamento nacional. Essas experiências são o exemplo de que é possível aliar amplitude e princípios. Este é o desafio do Movimento por uma Revolução Solidária: construir, coletivamente, um PSOL popular para transformar, radicalmente, o Brasil!